quarta-feira, 29 de junho de 2011

O Contrato Didático no sistema de ensino

O CONTRATO DIDÁTICO NO SISTEMA DE ENSINO
Leonilto Manoel da Cruz
Professor da Rede Estadual de Ensino

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de analisar o contrato didático e sua implicação na relação professor-aluno-saber. Através do estudo sobre alguns autores e da contribuição de cada um deles nesse assunto, nossa compreensão sobre as noções do contrato didático expõe, analiticamente, alguns fundamentos e considerações que apontam a sua importância no processo de ensino, através de sua aplicação e tomada de decisões no momento da ruptura do contrato didático.
Palavras-chave: contrato didático, relação professor-aluno-saber; ruptura.

Fundamentos do contrato didático
A discussão sobre contrato didático surgiu na década de 70, desenvolvida a partir da observação do cotidiano da escola. A pesquisa em Didática da matemática, que indicava um fracasso no domínio da disciplina, levou Brousseau (1978, apud D’AMORE, 2007) a desenvolver um sistema de relações entre os elementos que fazem parte da educação escolar. Nesse sistema, temos a relação professor-aluno, em que as regras e convenções funcionam como normas de um contrato, onde a relação envolve uma causa principal: o saber.

Segundo Pais (2001), o contrato didático está relacionado às obrigações imediatas e mútuas que se estabelecem entre professor e alunos. Isto significa que o contrato didático tem o seu fundamento em aspectos onde cada uma das partes envolvidas nessa relação desempenha o seu papel de forma produtiva e harmoniosa. O autor observa que as regras do contrato didático nem sempre estão claras na relação pedagógica:
Desse modo, devemos estar atentos para que o sentido da noção não seja interpretado de uma forma inadequada, ou seja, como se todas as regras e condições preexistissem em relação às atividades construídas, conjuntamente, por professor e alunos (PAIS, 2001, p.77).

Sob essa ótica, é importante considerar que a relação professor-aluno não é totalmente explícita, mas há a busca do equilíbrio que favorece o saber, pautado no diálogo e nas trocas entre os sujeitos envolvidos. Muitas regras são mantidas apenas oralmente e o seu sentido pode receber diferentes interpretações.   Brousseau (1986, p51) destaca a particularidade do contrato didático:

A relação que determina – explicitamente por uma pequena parte, mas, sobretudo implicitamente – aquilo que cada participante, professor e aluno, tem a responsabilidade de gerir e do qual ele será uma maneira ou de outra responsável diante do outro.

Quando essa relação fundamenta-se na tomada de consciência de papeis de ambas as partes, é natural que o conhecimento evolua significativamente, porque mesmo que o contrato didático não seja explícito em sua totalidade, os aspectos pedagógicos são claros, de modo que o saber não produz conflito e muito menos ruptura entre o professor, que ensina, e o aluno, que aprende.

Para Pais (2001, p.78), a percepção da existência do contrato didático torna-se mais evidente quando as regras são rompidas por uma das partes envolvidas, ocasionando a ruptura, que não é reflexo dos anseios dos sujeitos na ação educativa e sim, de como ocorre a interpretação sobre a prática pedagógica do docente. Isto caracteriza a quebra de relações ou acordos constituídos no contrato. O autor diz que “as raízes da noção do contrato didático estão associadas ao conceito de contrato social, proposto por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)” que defende que o homem, enquanto ser social tem a necessidade de ser condicionado a um conjunto de regras e compromissos, de modo que a vontade coletiva se legitime como a vontade da maioria, representada pelo contrato social.

Ao contrário de contrato social, em que as partes assinam embaixo das cláusulas legíveis e especificadas, D’amore (2007) diz que no contrato didático não há um documento regido por cláusulas, e embora nem sempre explícitas, as regras são estabelecidas pelas personagens envolvidas na ação didática, que objetiva tornar coerente um modelo de escola, do saber. Desse modo, as regras do contrato organizam as relações que alunos e professor estabelecem com o saber.

Machado (1999, p. 44) enfatiza que “a noção de contrato supõe a compreensão da escola como instituição social responsável pela transmissão do saber e, portanto, a idéia de uma tradição cultural”.
Essa compreensão se realiza pela relação histórico-social que envolve os elementos do contrato. O projeto pedagógico da escola, a metodologia adotada pelo docente, os objetivos dos conteúdos são fatores que influenciam sobre a construção do contrato didático. É por isso que Pais (2001, p.79), ao citar Filloux (1974, apud PAIS, 2001), considera que existe uma superioridade do professor em relação ao aluno:

Essa é uma situação em que pode ocorrer a imposição de um poder, considerado superior, a uma posição de inferioridade, reproduzindo o jogo social das relações de poder no ambiente escolar. Tal como acontece no quadro social, ao sujeito que acata essa hierarquia de poder é prometida uma recompensa de participar, como um vencedor, do território do saber escolar. É preciso acatar as regras do “jogo didático” para ser bem avaliado na escola. Há o predomínio de uma ideologia nessa relação de submissão, pois o contrato pedagógico se resume a uma condição de determinação (PAIS, 2001, p.79).

Por esse prisma, o contrato didático assume uma característica existente no contrato social, embora os elementos existentes sejam distintos pela natureza de cada sistema. Assim, as regras de um contrato didático tem características peculiares, como por exemplo, as condições existentes de forma implícita, cuja complexidade pode alterar o processo de ensino e aprendizagem.

O triângulo: professor, aluno, saber
Segundo D’amore (2007), a transmissão do conhecimento não se realiza de forma simples. É um fenômeno complexo, que requer uma ligação entre os três pólos que constituem o triângulo, sem limitar a análise apenas a um deles. Diferente de um modelo pedagógico imposto, o contrato didático contribui para o dinamismo na relação didática, onde o trinômio aluno-saber-professor se realiza de forma democrática. D’amore (2007) diz ainda que o conhecimento do aluno se realiza enquanto sujeito biológico, afetivo, epistêmico ou social, enquanto que o professor pode estudar a si próprio enquanto ser social, institucional, pedagógico e afetivo. Sobre o saber, o autor entende que

embora esteja materializado em livros ou máquinas, “o saber” é “objetivado” somente pela “atividade” de troca de críticas entre os seres humanos. (...) O saber não é nem uma substância, nem um objeto, é uma atividade intelectual humana, feita por sujeitos que se esforçam em dar razão ao que fazem e dizem (por meio da demonstração, o raciocínio)(D’AMORE, 2007, p.222).

Quando o autor descreve professor e aluno, como ser social, fica claro que nessa relação não pode haver um comportamento individualista, muito menos competidora.  Sendo a relação professor-aluno assimétrica, o professor deve refletir sobre a sua prática pedagógica de modo que o ensino favoreça a construção do saber. D’amore (2007, p.223) destaca que o professor está envolvido em uma série de relações delicadas, em que “por um lado, deve operar uma transposição didática do saber (que surge da pesquisa) ao saber ensinado (aquele da prática em sala de aula)”.

Na transposição didática, os caminhos de acessos ao conhecimento são norteados pelo professor, que planeja sua aula de acordo com o programa escolar, mas adaptando ao contexto dos alunos. É pela transposição didática que as transformações pelas quais passa o saber, desde a elaboração dos livros adotados pelo sistema de ensino até ser trabalhado em sala de aula pelo professor, que podemos ter uma noção integradora do triângulo citado por D’amore (2007).

Ruptura e negociação do contrato didático
Sabemos que o contrato didático tem regras explícitas e implícitas. Pais (2001, p.80) cita Brosseau (1986) que
observa que o mais importante não é tentar explicitar a totalidade das regras que constituem o contrato didático e, sim, delinear alguns de seus possíveis pontos de ruptura. Explicitar todas as suas regras é uma tarefa impossível, pois a natureza do contrato envolve, além das condições explicitadas pelas normas, interpretações subjetivas que não são totalmente previsíveis. De forma análoga, não é possível ter uma clareza absoluta quando à localidade dos pontos de ruptura.

Então, a ruptura do contrato didático acontece quando uma das partes envolvidas se opõe a alguma cláusula presente, mesmo implícita. Ainda que as regras do contrato sejam elaboradas de forma democrática, as condições e as interpretações subjetivas podem gerar um conflito entre as partes que, segundo Machado (1999), a ruptura se torna necessária para que haja uma renegociação em favor do aprendizado. Isto significa que nas relações onde o professor e o aluno, através do contrato didático, percebem que as regras foram quebradas, surgirá o conflito também com o saber. Renovar o contrato, então, será uma oportunidade de melhorar a relação entre as partes envolvidas, revendo objetivos e criando espaço de maior flexibilidade dentro da situação didática.

Pais (2001) analisa a ruptura do contrato didático a partir de três exemplos: 1) quando o aluno mostra desinteresse pela resolução dos problemas ou  não se envolve nas atividades; 2) quando o professor atribui ao aluno a resolução de um problema que não está de acordo com o nível intelectual e cognitivo do aluno; 3) quando o professor apresenta uma postura pedagógica incompatível com a sua função, como o que trata da ética, por exemplo. Para o autor, nesses três exemplos ocorre uma ruptura do contrato porque o processo de ensino e aprendizagem é obstruído, porque uma das partes provoca a quebra de uma regra, mesma que não seja explícita e formal. O autor ainda diz que em todos os casos é necessário perceber e superar essa ruptura para que o processo educativo continue.

O momento que mais favorece o estudo do contrato didático é a sua ruptura, porque é preciso que o contrato seja revisto e renegociado, de modo que haja um novo direcionamento sobre a postura do professor e do aluno mediante a prática pedagógica repensada. Por isso, o contrato didático também depende da estratégia de ensino adotada e da postura pedagógica assumida pelo professor (Pais, 2001).

É importante observar que em todo processo de ensino e aprendizagem há um contrato didático, que se constitui à medida que se realiza as ações do professor e do aluno na relação com o saber. É nessa relação que as interações estabelecidas nesse triângulo durante a evolução do programa, permite aos atores envolvidos efetivar seus papeis de aprendizes e produtores de conhecimento. A ruptura do contrato está durante essa progressão, no momento que a qualidade das relações com o saber é colocada em conflito, na tensão das regras não cumpridas.

A discussão sobre o contrato didático remete sobre o aprendizado e sobre a docência, mas principalmente sobre o sujeito da aprendizagem. Sendo assim, o contrato não nasce na relação entre o professor e o aluno, mas na relação didática, nas situações em que o professor e o aluno interagem com o objeto em estudo. Um problema envolvendo a matemática, por exemplo, deve ter dados suficientemente significativos em seu enunciado, de modo que possibilite ao aluno caminhar em seu propósito, sentindo-se sujeito do seu processo de aprendizagem, não somente pela harmonia nas relações, mas também pela oportunidade de ultrapassar as dificuldades e incorporar regras, causar rupturas, ponto fundamental de um contrato didático.


Referências Bibliográficas
D’AMORE, BRUNO. Elementos de didática da Matemática. São Paulo: Livraria da Física, 2007.
MACHADO, Silvia Dias Alcântara, et al. Educação Matemática: uma introdução. São Paulo: EDUC, 1999.
PAIS, Luiz Carlos. Didática da matemática, uma análise da influência francesa.  Belo Horizonte: Autêntica, 2001
ROSSEAU, Guy, Fondements et méthodes de La Didátctique das Mathématiques. Recherches em Didactique dês Mathématiques, v.7, n.2, p.51, 1986

sábado, 4 de junho de 2011

Homossexualidade versus Família e Escola

Recentemente, uma polêmica dividiu opiniões sobre a distribuição de um material produzido pelo MEC às escolas, que tratava da homossexualidade. Conhecido como “kit-gay”, o material recebeu duras críticas de diversos segmentos sociais, principalmente de evangélicos e conservadores. Depois de reprovado, ficou a ideia de que falar sobre a sexualidade é dever da família, a quem compete quando e como tratar desse assunto tão delicado. Mas será mesmo que os pais sabem lidar com sexualidade dos filhos?

Na verdade, dizer que educação sexual é papel da família fica apenas no papel. Ainda ontem, falar de sexo com os pais era tabu, hoje não mais? Estranha-me agora que eles queiram assumir essa responsabilidade. O preconceito contra os homossexuais é um dos mais fortes da nossa sociedade e a família é uma das que mais contribui para a produção e reprodução desse preconceito, então como podemos querer que nossos filhos cresçam com uma educação pautada no respeito à diversidade, sem discriminação e homofobia?

Desde cedo, é comum os filhos aprender a linguagem do preconceito que, conscientemente ou inconscientemente, gera atitudes nem sempre favoráveis a uma (in)formação livre de discriminação. Quando a afetividade dos filhos envolve a homossexualidade, o problema se amplia. Em geral, nenhum pai quer um filho “gay” ou “lésbica”, o que torna a família um nicho da reprodução de preconceitos que envolvem a sexualidade. Para isso, os discursos vão de Adão e Eva à procriação humana, valendo-se de valores culturais, sociais e históricos, sujeitos de convenções sociais instituídas e dominantes.

Com o conflito, mesmo que pais e filhos tentem conviver, o mal-estar dentro de casa acaba ficando pior que o fora dela. Então, tendem a ter ações e atitudes que geram graves conseqüências, principalmente psicológicas, pois nem todos conseguem superar a falta de apoio da família. Sem generalizar, ainda que os filhos não sejam vítimas da violência física ou psicológica, é comum ver na família pais e filhos tomados pela angústia de não poder falar, compartilhar seus anseios e sentimentos, sobre o que se é como homem ou como mulher sem estereótipos, por causa dos preconceitos reproduzidos lar afora.

Penso que a escola deve sim, inserir educação sexual em seu currículo. Não de forma impositiva, como pareceu o “kit-gay”,  mas através de um processo que envolva também a família. Que os pais saibam o que os filhos estão aprendendo e que participem também dessa educação. É na escola que os filhos interagem, conhecem os outros e se conhecem. Não há como fugir das trocas sociais que naturalmente acontecem no contexto escolar. Todas as informações recebidas pelo aluno são trazidas para dentro da escola, a sexualidade se manifesta no comportamento deles, na escola ou fora dela. É função da escola combater o preconceito e rever conceitos distorcidos.

Enquanto isso ficar apenas no discurso, a falta de informação e o preconceito vai continuar. Quem os pais eduquem, mas também que a escola compreenda a sua importância nesse processo. Acima de tudo, que trabalhem nas futuras gerações a valorização humana, que tolera e respeita as diferenças, despidos de “verdades absolutas” e livres daquilo que hoje, infelizmente, estamos presos.